CABARÉ EM
O HOMEM SANTO
DE CHRISTINA RODRIGUES.
O HOMEM SANTO
DE CHRISTINA RODRIGUES.
Frio, frio que impede de pensar. Que entra pelos pés e faz as mãos tremerem, "Mãmãe, que horas são?" O relógio da igreja calado, matreiro. "Cala a boca, menino! Não enche o saco!" E cata lixo! E cata lixo! E cata lixo! "Achei um pedaço de maçã!" Cheira, limpa, esfrega e coça o pé, dividem ao meio e comem desesperados. E lá vem o homem da fundação. Leão XII. Esconde, esconde, foge. Papel, papel, papel, como é difícil arder uma fogueira com essa chuva. Um rato. Ele olha. Eles olham. O rato sozinho roía o nada. "E se comêssemos o rato? Carne! A quanto tempo não sei o que é carne." "Eu comi outro dia" diz o menino, "Do resto do prato do turista". E olha o rato parado. Pensou, pensou e quando se ergueu o rato entrou no buraco. Perdeu o rato. Um rato gordo e forte. Dava refeição pros dois e ainda dava pra guardar um pedaçinho. "Culpa sua menino! Tu me distrái! Agora..." E cata lixo, e cata lixo, "Mãe, será que isso vale alguma coisa?" "Se valesse não tava no lixo. Que merda de vida -Te emprego, mas sem o menino." Diz a voz na lembrança. Ah, se tivesse dado o menino, hoje tava na casa de madame, vendo novela das sete embaixo do cobertor. Num tava pensando se caçava ou não um rato, "Culpa sua menino!" Entra debaixo da marquise, tão estreita que tem que se encolher todo para não molhar os pés. 'Mãe, mora dentro da lua um homem santo que luta contra um dragão mesmo?" Silêncio: "Mas se ele é santo porque precisa matar um dragão?""Fica quieta criança, me deixa dormir."
Eis que chega o sono nos olhos da velha senhora de vinte e dois anos. Mas em seu filho de sete o mistério da lua persiste. Fica vendo dragões fantásticos com mil vidas que morrem todo dia e ficam maiores no dia seguinte. E homens que bebem seu sangue para se manterem vivos e são confundidos com santos por sua imortalidade. Santo é quem faz milagre -diz sua razão- matar não é milagre nenhum. Lembra do Tinhorão que dava tiro por qualquer coisa e não tinha nada de santo. E lembra da estória de São Francisco que ouviu escondido na igreja. A mãe abandonada em seu sonhos lembrava de um tempo feliz em que qualquer um daria-lhe uma boa refeição por uma sacanagem qualquer, ela que foi a ninfeta mais cobiça da Lapa e Cinelândia. Sonha que um dia aquele holandês que a força mostrou-lhe a parte gostosa do sexo voltasse e a levasse para seu país.
Eis que chega o sono nos olhos da velha senhora de vinte e dois anos. Mas em seu filho de sete o mistério da lua persiste. Fica vendo dragões fantásticos com mil vidas que morrem todo dia e ficam maiores no dia seguinte. E homens que bebem seu sangue para se manterem vivos e são confundidos com santos por sua imortalidade. Santo é quem faz milagre -diz sua razão- matar não é milagre nenhum. Lembra do Tinhorão que dava tiro por qualquer coisa e não tinha nada de santo. E lembra da estória de São Francisco que ouviu escondido na igreja. A mãe abandonada em seu sonhos lembrava de um tempo feliz em que qualquer um daria-lhe uma boa refeição por uma sacanagem qualquer, ela que foi a ninfeta mais cobiça da Lapa e Cinelândia. Sonha que um dia aquele holandês que a força mostrou-lhe a parte gostosa do sexo voltasse e a levasse para seu país.
O HOMEM SANTO, DE CHRISTINA RODRIGUES - CONTINUAÇÃO.
Mas ele não aparecia.E seu gozo custou-lhe o menino, que tentou abortar de diversas maneiras mas acabou deixando já que Deus quis assim. Como Deus havia sido cruel com ela. Como Deus havia sido cruel com ela. Prenha, homem nenhum queria. Deu pra ganhar a vida por três meses mas vomitava muito e eles achavam que ela estava com doença. Apanhou e tudo. Arrumou emprego em casa de família, mas depois que a barriga começou a crescer foi pra rua. Ninguém a queria com o menino. Teve na rua sem ajuda de ninguém. Depois criou afeição e não quis mais se livrar dele.
Os meses de rua maltrataram muito a menina.
O corpo deformado já não dava lucro nenhum. O menino ajudava a ganhar esmola. Não lhe deu nome nenhum porque não sabia como chamá-lo. E mesmo se soubesse não ia mesmo ter dinheiro pro registro! Chamava-o de Tiquinho e só, já que era tão clarinho e franzino. Lembrava o pai. Uma senhora quis comprá-lo uma vez, mas ela disse -“Prá quê? Prá limpar privada de madame? Aqui pelo menos me faz companhia.”- Antes tivesse dado.
Surge o gato. O menino olhando a lua mal vê o gato. Mas ele vem de mansinho e se esfrega nas pernas dele. Um gato bonito, negro como a noite, com grandes olhos verdes brilhando como uma estrela.”Vou te chamar de noite!” O gato fala com os olhos e o menino decodifica, se emociona, conversa, e ficam os dois abraçados, sendo amigos. O menino nunca teve um amigo. “Vou parecer filho de madame se tu ficar comigo! Vou ter bichinho de estimação. Será que a mamãe me deixa ficar com você?” O gato e o menino adormecem juntos. Acorda com os miados desesperados do gato. A mãe segurava o gato pelo pescoço enquanto procurava uma pedra para matá-lo.”Mãe, o que é que você ta fazendo?” ”Ainda bem você levantou, me ajuda a achar a faca ou uma pedra pesada” “Pra que mãe?” “Não enche o saco, menino. Num ta vendo que é pra matar o gato?” “Mãe num faz isso! Larga o bichinho. Ele é meu amigo.” “Cala a boca menino. Gente pobre não tem amigo. Ele é amigo é do meu estômago, vai me matar a fome.” “Mãe ele só ficou aqui porque eu pedi.” O menino tinha a voz embargada e os olhos mareados. Não fosse a vida que levava já estaria aos prantos. A mãe nem deu ouvidos, achou a faca e abriu o gato de ponta a ponta. O menino fechou os olhos e ficou em silêncio profundo. Ela limpou, tirou o pelo, cortou a cabeça, enfiou em pedaços no espeto e assou na fogueira de papéis que o menino catou. O menino, de olhos fechados, descobriu uma dor diferente das que já tinha experimentado. Deixou cair duas lágrimas teimosas, respirou fundo e sentiu o cheiro da carne assando. Foi ficando triste, triste, achava que ia morrer. O coração quase parava. Abriu os olhos ao cutucão da mãe que lhe entregava um dos espetos de carne. O menino pegou o espeto e comeu o amigo, e pensou “É, o homem que mata o dragão é santo sim.” E nunca mais foi o mesmo.
(1989-registrado no pela Escola de Teatro Martins Penna na Biblioteca Nacional. )
Mas ele não aparecia.E seu gozo custou-lhe o menino, que tentou abortar de diversas maneiras mas acabou deixando já que Deus quis assim. Como Deus havia sido cruel com ela. Como Deus havia sido cruel com ela. Prenha, homem nenhum queria. Deu pra ganhar a vida por três meses mas vomitava muito e eles achavam que ela estava com doença. Apanhou e tudo. Arrumou emprego em casa de família, mas depois que a barriga começou a crescer foi pra rua. Ninguém a queria com o menino. Teve na rua sem ajuda de ninguém. Depois criou afeição e não quis mais se livrar dele.
Os meses de rua maltrataram muito a menina.
O corpo deformado já não dava lucro nenhum. O menino ajudava a ganhar esmola. Não lhe deu nome nenhum porque não sabia como chamá-lo. E mesmo se soubesse não ia mesmo ter dinheiro pro registro! Chamava-o de Tiquinho e só, já que era tão clarinho e franzino. Lembrava o pai. Uma senhora quis comprá-lo uma vez, mas ela disse -“Prá quê? Prá limpar privada de madame? Aqui pelo menos me faz companhia.”- Antes tivesse dado.
Surge o gato. O menino olhando a lua mal vê o gato. Mas ele vem de mansinho e se esfrega nas pernas dele. Um gato bonito, negro como a noite, com grandes olhos verdes brilhando como uma estrela.”Vou te chamar de noite!” O gato fala com os olhos e o menino decodifica, se emociona, conversa, e ficam os dois abraçados, sendo amigos. O menino nunca teve um amigo. “Vou parecer filho de madame se tu ficar comigo! Vou ter bichinho de estimação. Será que a mamãe me deixa ficar com você?” O gato e o menino adormecem juntos. Acorda com os miados desesperados do gato. A mãe segurava o gato pelo pescoço enquanto procurava uma pedra para matá-lo.”Mãe, o que é que você ta fazendo?” ”Ainda bem você levantou, me ajuda a achar a faca ou uma pedra pesada” “Pra que mãe?” “Não enche o saco, menino. Num ta vendo que é pra matar o gato?” “Mãe num faz isso! Larga o bichinho. Ele é meu amigo.” “Cala a boca menino. Gente pobre não tem amigo. Ele é amigo é do meu estômago, vai me matar a fome.” “Mãe ele só ficou aqui porque eu pedi.” O menino tinha a voz embargada e os olhos mareados. Não fosse a vida que levava já estaria aos prantos. A mãe nem deu ouvidos, achou a faca e abriu o gato de ponta a ponta. O menino fechou os olhos e ficou em silêncio profundo. Ela limpou, tirou o pelo, cortou a cabeça, enfiou em pedaços no espeto e assou na fogueira de papéis que o menino catou. O menino, de olhos fechados, descobriu uma dor diferente das que já tinha experimentado. Deixou cair duas lágrimas teimosas, respirou fundo e sentiu o cheiro da carne assando. Foi ficando triste, triste, achava que ia morrer. O coração quase parava. Abriu os olhos ao cutucão da mãe que lhe entregava um dos espetos de carne. O menino pegou o espeto e comeu o amigo, e pensou “É, o homem que mata o dragão é santo sim.” E nunca mais foi o mesmo.
(1989-registrado no pela Escola de Teatro Martins Penna na Biblioteca Nacional. )
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