sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Cabare 13 - Vento.








VENTO
De Sheila FONSECA


Chegou em casa, entrou sem acender as luzes pisando leve como se fosse acordar alguém, mas morava só, era mania de épocas em que morava com a mãe de sono leve que dormia no quarto da frente em posição estratégica para acompanhar o crescimento dos filhos, as andanças, as entradas sorrateiras noite à dentro e a derradeira saída para vida.
Acendeu a luz do abajur, gostava de luz indireta, do jogo de sombras que atiçava a imaginação; cabeça rodando de agitação e efeito da bebida, fitou o apartamento e sorriu satisfeita pois sentia prazer na liberdade de morar sozinha. Estava excitada, no frenesi de sempre ao chegar de uma noitada; as risadas e conversas emboladas ainda ecoavam em sua mente. Deitou no sofá se enroscando no veludo do seu gato que dormia em sono solto e ao sentir seu toque só mexia os bigodes e continuava em sua preguiça, pois os felinos são assim: entendem as noitadas porque também são notívagos, boêmios companheiros de farras.
O vento soprava suavemente em sua janela aberta, podia ouvir ao longe o sino mensageiro de uma vizinha. Que mensagens ele traria?
Ouvia o assobio fino dos morcegos que não a assustavam mais, os barulhos confusos, porém agradáveis da cidade ao fundo e aqueles sons a deixavam ainda mais longe, a mente mais solta, foi assim que ela lembrou de Carlos. Ele também estava na festa, sempre charmoso, vestindo logo a sua blusa preferida e talvez também da outra que o acompanhava na festa. O que teria visto naquela mulher? Não era o tipo dele, era gorda. Talvez fosse um pouco de exagero e maldade, não era gorda totalmente, mas à cima do peso nos seus rigorosos padrões, poucas formas - coisa que lembrava bem, ele sempre fizera questão - talvez fosse um pouco mais velha que ele, os cabelos eram curtos num corte moderno, parecia sim uma mulher moderna, passava uma certa fluência pela segurança e velocidade com que parecia falar ao longe, mas era um pouco masculinizada e definitivamente sem atrativos físicos dos quais ela podia – e costumava disfarçadamente – se gabar caso quisesse, pois sim, era bela, uma mulher alta, esguia, bom porte, bem feminina na maneira de ser, eram tipos diametralmente opostos. Esse Carlos, sempre surpreendendo... Achou gozado ao se lembrar de um elogio grosseiro que um ex-namorado fizera comparando-a à uma "égua quarto-de-milha" ao elogiar seu porte; achou uma grosseria de homem, detestou mas depois consolou-se , era um elogio e afinal, era merecedora dele. Mas pensando bem, o que mais incomodava na tal mulher era a alegria dela ao lado do homem que amava e que a escolhera pois também estava feliz, estavam em sintonia o que não deixava de ser algo bonito de se ver. De qualquer maneira ela sentiu-se vingada ao perceber o visível incomodo e por vezes o brilho triste nos olhos de Carlos ao vê-la tão bela, refeita, solta, se divertindo e divertindo, cobiçando e sendo alvo de cobiça, vivendo enfim.
O músico era interessante a conversa fluía gostosa, flertaram muito, trocaram telefones, mas ela não ligaria nunca. Ela gostava disso, de provocar, de ser vista e sair como chegou, como o sopro de vento que invadia a janela e agitava suas cortinas eternizando assim só momentos bons. Era assim, achava que a superficialidade trazia mais contentamento e menos tristeza, sentia a fugacidade das coisas, vivia a vida num sopro de vento.
De repente sentiu seus pensamentos serem tomados por uma agonia, o bater dos puxadores de madeira da cortina batiam compassados, crescentes. Ventania é coisa dissimulada, pensou: Chega tateando sorrateira, crescendo devagar, enrolando agente, quando menos se espera nos pega de surpresa e nunca vem sozinha , traz tempestades avassaladoras. Como a vida.
Esse era um vento estranho, pois apesar de inverno tinha um sopro quente e não parecia ter direção definida, mudava à todo momento, era um vento que não conhecia que rodopiava como os seus sentimentos depois daquela festa e do encontro inesperado com o Carlos, um antigo amor que fazia vir à tona um turbilhão de sentimentos que nem lembrava que existia e não sabia lidar. O que fazia sua mente rodar não era mais a agitação ou o efeito da bebida mas o rodamoinho de lembranças boas e ruins, sensações de calores e calafrios, sabores doces e amargos que a faziam girar como o vento parecia agora soprar dentro dela. Ela vai até a janela abre as cortinas revoltas e se depara com um espetáculo único:







VENTO
De Sheila FONSECA - Continuação.

Um rodamoinho em frente a sua janela emanando descargas elétricas que irradiavam uma luz de fosforescência suave. Ela não teve medo, fechou os olhos e se deixou envolver pela ventania fascinante que agora inexplicavelmente adentrou o vão de sua janela e lá dentro da ventania, do olho do rodamoinho ouviu suave seu nome:
__Nina.
Se concentrou para ouvir melhor e agora teve certeza, sim era seu nome baixinho ao fundo outra vez como num sussurro. Sua respiração ofegava no ritmo da ventania e mais uma vez mais alto:
__ Nina.
Seu nome era Karina, somente os mais próximos a chamavam assim e o chamado se repetia cada vez mais alto até romper num grito:
__Nina!

Ela abriu os olhos tomada pela sensação inebriante da ventania e para sua surpresa se deparou com Carlos como um espectro translúcido, parado, cristalizado, lindo como no momento em que se conheceram; ele se deslocava com o vento mas numa velocidade mais baixa, como se em câmera lenta e não estava sozinho, lá estava Hélio um namorado de adolescência que a deixara para ficar com uma de suas mais queridas amigas. Ao fundo avistou Evandro um moreno índio que conheceu num carnaval e atou um romance que terminou na quarta-feira de cinzas e lá também estavam Roberto, Vitor, Felipe, Renato, Jorge, estavam todos sem exceção, eram seus ex-amores num desfile mórbido de cadáveres familiares. Eles giravam para baixo lentamente na direção do olho do rodamoinho que não podia se avistar de longe mas parecia ser quente, aconchegante, sentia uma estranha sensação de segurança e descia junto sem fazer força.
A voz que chamava vinha da cima, era uma voz feminina familiar, mas que não podia atinar ao certo de quem era. Olhou para cima e avistou uma luz branca um tanto incômoda, fria, que fazia lembrar uma luz de UTI de hospital, gélida, impessoal. E a voz insistia:
__Nina! Vem Nina, anda!
__Sobe Nina!
Tinha medo da sensação de insegurança que aquela luz inspirava. Olhou para baixo em dúvida, era difícil a decisão e tinha de ser tomada.
__Nina anda, aqui é o futuro e o futuro é sempre melhor por mais que nos cause medo por ser desconhecido!
__ Vai ser excitante, cheio de novidades eu prometo!

E aquela voz foi ficando mais distinta em sua mente, parecia a sua voz, sim definitivamente era igual a sua.
A decisão foi difícil mas acreditava ter tomado a certa, resolvera subir até onde a voz chamava e estendeu os braços em direção a luz fria, cerrou os
olhos novamente e a subida pareceu suave. Respirou fundo e ao abrir os olhos estava em sua sala, era madrugada, luz indireta, janela aberta, o gato a fitava com ares de cumplicidade. Ele sabia, tinha certeza. Pegou-o no colo roçando no veludo negro de seu pelo e tornou a sentar-se no sofá satisfeita, sentia-se mais leve. Estava pronta para a próxima ventania.

* Sheila Fonseca é Jornalista

sábado, 4 de agosto de 2007

CABARE 13-O HOMEM STO .




CABARÉ EM

O HOMEM SANTO

DE CHRISTINA RODRIGUES.



Frio, frio que impede de pensar. Que entra pelos pés e faz as mãos tremerem, "Mãmãe, que horas são?" O relógio da igreja calado, matreiro. "Cala a boca, menino! Não enche o saco!" E cata lixo! E cata lixo! E cata lixo! "Achei um pedaço de maçã!" Cheira, limpa, esfrega e coça o pé, dividem ao meio e comem desesperados. E lá vem o homem da fundação. Leão XII. Esconde, esconde, foge. Papel, papel, papel, como é difícil arder uma fogueira com essa chuva. Um rato. Ele olha. Eles olham. O rato sozinho roía o nada. "E se comêssemos o rato? Carne! A quanto tempo não sei o que é carne." "Eu comi outro dia" diz o menino, "Do resto do prato do turista". E olha o rato parado. Pensou, pensou e quando se ergueu o rato entrou no buraco. Perdeu o rato. Um rato gordo e forte. Dava refeição pros dois e ainda dava pra guardar um pedaçinho. "Culpa sua menino! Tu me distrái! Agora..." E cata lixo, e cata lixo, "Mãe, será que isso vale alguma coisa?" "Se valesse não tava no lixo. Que merda de vida -Te emprego, mas sem o menino." Diz a voz na lembrança. Ah, se tivesse dado o menino, hoje tava na casa de madame, vendo novela das sete embaixo do cobertor. Num tava pensando se caçava ou não um rato, "Culpa sua menino!" Entra debaixo da marquise, tão estreita que tem que se encolher todo para não molhar os pés. 'Mãe, mora dentro da lua um homem santo que luta contra um dragão mesmo?" Silêncio: "Mas se ele é santo porque precisa matar um dragão?""Fica quieta criança, me deixa dormir."
Eis que chega o sono nos olhos da velha senhora de vinte e dois anos. Mas em seu filho de sete o mistério da lua persiste. Fica vendo dragões fantásticos com mil vidas que morrem todo dia e ficam maiores no dia seguinte. E homens que bebem seu sangue para se manterem vivos e são confundidos com santos por sua imortalidade. Santo é quem faz milagre -diz sua razão- matar não é milagre nenhum. Lembra do Tinhorão que dava tiro por qualquer coisa e não tinha nada de santo. E lembra da estória de São Francisco que ouviu escondido na igreja. A mãe abandonada em seu sonhos lembrava de um tempo feliz em que qualquer um daria-lhe uma boa refeição por uma sacanagem qualquer, ela que foi a ninfeta mais cobiça da Lapa e Cinelândia. Sonha que um dia aquele holandês que a força mostrou-lhe a parte gostosa do sexo voltasse e a levasse para seu país.




O HOMEM SANTO, DE CHRISTINA RODRIGUES - CONTINUAÇÃO.

Mas ele não aparecia.E seu gozo custou-lhe o menino, que tentou abortar de diversas maneiras mas acabou deixando já que Deus quis assim. Como Deus havia sido cruel com ela. Como Deus havia sido cruel com ela. Prenha, homem nenhum queria. Deu pra ganhar a vida por três meses mas vomitava muito e eles achavam que ela estava com doença. Apanhou e tudo. Arrumou emprego em casa de família, mas depois que a barriga começou a crescer foi pra rua. Ninguém a queria com o menino. Teve na rua sem ajuda de ninguém. Depois criou afeição e não quis mais se livrar dele.
Os meses de rua maltrataram muito a menina.
O corpo deformado já não dava lucro nenhum. O menino ajudava a ganhar esmola. Não lhe deu nome nenhum porque não sabia como chamá-lo. E mesmo se soubesse não ia mesmo ter dinheiro pro registro! Chamava-o de Tiquinho e só, já que era tão clarinho e franzino. Lembrava o pai. Uma senhora quis comprá-lo uma vez, mas ela disse -“Prá quê? Prá limpar privada de madame? Aqui pelo menos me faz companhia.”- Antes tivesse dado.
Surge o gato. O menino olhando a lua mal vê o gato. Mas ele vem de mansinho e se esfrega nas pernas dele. Um gato bonito, negro como a noite, com grandes olhos verdes brilhando como uma estrela.”Vou te chamar de noite!” O gato fala com os olhos e o menino decodifica, se emociona, conversa, e ficam os dois abraçados, sendo amigos. O menino nunca teve um amigo. “Vou parecer filho de madame se tu ficar comigo! Vou ter bichinho de estimação. Será que a mamãe me deixa ficar com você?” O gato e o menino adormecem juntos. Acorda com os miados desesperados do gato. A mãe segurava o gato pelo pescoço enquanto procurava uma pedra para matá-lo.”Mãe, o que é que você ta fazendo?” ”Ainda bem você levantou, me ajuda a achar a faca ou uma pedra pesada” “Pra que mãe?” “Não enche o saco, menino. Num ta vendo que é pra matar o gato?” “Mãe num faz isso! Larga o bichinho. Ele é meu amigo.” “Cala a boca menino. Gente pobre não tem amigo. Ele é amigo é do meu estômago, vai me matar a fome.” “Mãe ele só ficou aqui porque eu pedi.” O menino tinha a voz embargada e os olhos mareados. Não fosse a vida que levava já estaria aos prantos. A mãe nem deu ouvidos, achou a faca e abriu o gato de ponta a ponta. O menino fechou os olhos e ficou em silêncio profundo. Ela limpou, tirou o pelo, cortou a cabeça, enfiou em pedaços no espeto e assou na fogueira de papéis que o menino catou. O menino, de olhos fechados, descobriu uma dor diferente das que já tinha experimentado. Deixou cair duas lágrimas teimosas, respirou fundo e sentiu o cheiro da carne assando. Foi ficando triste, triste, achava que ia morrer. O coração quase parava. Abriu os olhos ao cutucão da mãe que lhe entregava um dos espetos de carne. O menino pegou o espeto e comeu o amigo, e pensou “É, o homem que mata o dragão é santo sim.” E nunca mais foi o mesmo.

(1989-registrado no pela Escola de Teatro Martins Penna na Biblioteca Nacional. )

CABARÉ 13 - O PRESENTE.





O PRESENTE.
De Paulo Ralf.



Januário se sentiu num dia de sorte por se lembrar que aquele dia era uma data importantíssima que ele sempre esquecia. Aniversário de casamento. E ai já se vão 13 anos.
Em todo o ano essa era a data que sempre lhe trazia problemas pois sempre esquecia e não comprava nada. Depois de um dia estressante na repartição e, mesmo com uma baita chuva que o esperava lá fora, lá foi ele.
O que é que eu vou comprar à essa hora com todo o comércio fechando, chovendo, e com essa grana? Se perguntava.
Uma barraca de camelô já fechando e cheia de artigos femininos, era uma visão. Era como ver uma geladeira cheinha de geladíssimas cervejas bem no meio do deserto do Saara!
-Salvação!!!
Exclamou aliviado.
-‘Noite moça. Tudo bem? Quanto é aquela bolsa preta ali?
-50 reais.
-E aquela sandália ali?
-40 reais.
-E esse colar de contas verdes?
-35 reais.
-Aquela bolsa grande colorida?
-60 reais.
-Urrg! Glub...
Enquanto Januário perguntava o preço de tudo, desesperado, pensando na grana que ia ter que gastar, a vendedora apressadamente guardava suas mercadorias nas caixas.
-Moça, a senhora não pode guardar as coisas mais devagarzinho não?
Perguntou já enlouquecido sem encontrar alguma coisa que fosse bem bonita e é claro, barata, que fosse agradar a esposa.
-Claro que não!
Respondeu a vendedora em tom áspero.
-A essa hora e com esse tempo... o senhor acha que eu vou ficar aqui a noite toda?
-Desculpe senhora mas é que eu tenho de comprar um presente p'ra minha patrôa e não tenho muito dinheiro p'rá gastar.
-Então leva maquiagem "xente"!
É tudo baratinho e a mulherada adora.
-Mas eu não entendo nada disso!..




O PRESENTE
DE
PAULO RALF. CONTINUAÇÃO-



-Olha esse batom. Lindo, na cor da moda e so custa 3 reais.
-3 reais, que maravilha!
-Tá vendo?
-E as mulheres gostam mesmo disso?
-Ficam loucas.
-Maravilha!
Estava ai a solução.
-Moça eu não entendo nada disso. Será que a senhora me ajudava a comprar por, no máximo por 20 reais, , algumas dessas coisinhas coloridas? Quero deixar a patroa bem feliz.
-Claro, olha aí. Lápis de olho dois reais, batom 3 reais, sombra 5 reais...
Assim, a vendedora foi ensacando as coisas à seu gosto enquanto Januário aliviado só pensava na noite maravilhosa que lhe esperava.
Olha, deu 25,50, tá bom?
-Maravilha! Toma aí. Muito obrigado. A senhora salvou minha vida, embrulha p’ra presente bem bonito. Brigado.
Contente com a economia que fez, Januário foi direto para o buteco tomar uma gelada antes de ir para casa.
É hoje!
Comentou com algum típico companheiro conhecido de bar.
-É hoje que eu pego essa nega veia de jeito...
Então, depois daquele desconforto habitual do ônibus lotado, ruas esburacadas, trânsito caótico e todas aquelas escadas, ele finalmente chega em casa.
Cheio de más intenções e com as mãos escondidas p’ra trás, ele diz alegre p’ra sua mulher.
-‘Noite amor! Toma aqui o seu presente. Feliz 13º aniversário. ‘Brigado por me aturar por todos esses anos.
-Ô mozinho!
Marilúcia toda contente corre p’ro abraço.
Ô mozinho, ce é tão ao... o que é que houve? Você sempre esquece...
-É pretinha... sabe como é cabeça de homem né? Sempre fora do ar...
E assim, depois de um longo beijo, Januário se larga no sofá todo à vontade enquanto marilúcia se prepara para abrir o pacote coloridíssimo que o seu amado companheiro lhe trouxe.
-Mozinho... ‘ce é tão bão... Olha, fiz aquele ensopadinho que você tanto gosta.
-Beleza!
Januário, já no segundo copo daquela cerveja baixa renda que ele
costuma ter sempre em casa p’ro futebol de domingo, e por se achar muito esperto, só pensa na sobremesa, então...
-O queee!? Maquiage?! Maquiage?! Maquiage barata de camelô?! To cheia disso na penteadeira e quase nem uso!!!
-Mas amor...
-Amor é o cacete!!! Ta me chamando de feia por acaso?! Só boto maquiage quando a gente vai p’ro pagode, mesmo assim você nem nota.

Só fala do meu decote, da altura da minha saia, do vestido apertado, dos meus peito de fora... arra, vai à merda!!!
-Mas môzinho, comprei com todo carinho p'ra você, não faz assim...vim do trabalho doido p'ra chegar em casa, te encher de beijinho, te amar gostoso...
-Amar gostoso é o cacete!!! Tá pensando oquê? Que eu sou estautua?! Chega ai, nem faz preliminar, papai-mamãe cabô! Dá tempo nem p'ra gozar!
-Mas môzi...
-Moôzinho é o caralho!
Marilúcia revoltada volta ao quarto e joga com raiva um travesseiro e um lençol na cara de Januário e sai resmungando batendo a porta do quarto.
-Mas môzinho da minha vida...
-Da vida é o caralho!!1
-Januário ouve a voz de Marilúcia vinda do quarto trancado. Ele ainda tenta bater na porta, falar alguma coisa, mas Marilúcia irritadíssima só esbraveja e resmunga.
Januário já conformado, sentado no sofá com a mão no queixo,. desolado, tomando o quinto copo de pinga e comendo um sandwiche de mortadela feito com um pão muxibento que sobrou do café e sem margarina, porque acabou, desabafa baixinho.
-É, a gente não faz, leva pau!...A gente faz, leva pau!... Deus! Afinal... quequeessamuiéqué?! Deusdocéuvirgemsanta!
Suspira.
-Tem nada não eu entendo.
Essa tal de tpm é foda!

quinta-feira, 29 de março de 2007






O VELHO TRISTE


de Reinaldo Simões.




Todos os dias passando por um bar da rua, via a figura triste de um velho que parecia olhar para o infinito. Seu rosto enrugado transmitia bem estar, mas ao mesmo tempo uma profunda tristeza. Reparei que nunca conversava e sentava-se sozinho à mesa. Bebia cerveja e bebericava um aguardente qualquer. Seu olhar quase imóvel era raramente interrompido em sua placidez por algum suspiro profundo. Aquele rosto calmo e perdido, sua postura quase congelada, atraiu minha curiosidade. Mas nos tempos de hoje, a vida, mesmo nos bares, exige uma certa rapidez, e como não sou de importunar quem quer que seja, deixei de lado.
Entretanto em um dia de muito cansaço e parando no mesmo bar para beber um refrigerante, notei que todas mesas e cadeiras estavam ocupadas, a não ser uma que sobrava na mesa do velho triste. Em um dia comum me debruçaria sobre o balcão a bater papo com o dono do bar ou algum atendente, mas naquela ocasião não deu. É, cansaço de trabalho extremo e porre contínuo desmoronam qualquer um! Foram duas semanas de viagem dirigindo uma peça teatral pelo interior. Além do trabalho ser duro, bebe-se à noite com os atores para comemorar o sucesso e de dia com os técnicos durante os interválos. Então o certo é que pedi para sentar-me à cadeira que sobrava, e acrescentei -"Se o senhor estiver esperando alguém, fique à vontade para recusar."- mas prontamente estendeu a mão apresentando o lugar para que eu me sentasse.
O tempo decorreu com uma contínua brisa morna, muito agradável naquele inverno, e ficamos em silêncio durante muito tempo. Ele mesmo quebrou o silêncio oferecendo-me um copo de cerveja e pedindo um cigarro. Era o que eu precisava para praticar meu plano de desvendá-lo.
Descobri no velho uma conversa animada, de um conhecimento atual muito amplo. Descobri que aquele velho, ex-servente de obras, ex- pescador, ex-rico (ganhou certa vez na Loteria), possuia uma história de vida interessantíssima! Mulheres, viagens, aventuras e família.
Com mais tempo de bate papo me disse que escreveu um livro de poesias sem nunca publicar, que a única falta que sentia na vida era de sua família que num momento de loucura abandonou (e agora tinha muitra vergonha de voltar). Quando ele começou a rir, até gargalhar às vezes, o Leônidas me chamou do balcão e disse que desde o primeiro dia que o velho pousou por ali, há anos, nunca o viu naquele estado.
Na hora da volta para casa, jurando internamente que aqueles seriam os últimos copos de cerveja durante meses, aprestei minha mão para um forte cumprimento, mas contra qualquer expectativa levantou-se e me deu um abraço, olhou para mim com um sorriso de plena satisfação, deu adeus e se foi.
Os outros dias transcorreram com a mesma correria de trabalho, e passando rapidamente pelo bar não o vi mais. É claro que após um mês e pouquinho fui ao balcão do Leõnidas e perguntei pelo velho. O Leônidas falou que depois daquele dia nunca mais apareceu -"Vai ver que morreu, ja era muito velho!"- disse.
Cá pra mim, eu prefiro que tenha procurado sua família e que hoje esteja por lá, comemorando com aquele último sorriso que vi, e algumas cervejas em volta.
Fim.

quarta-feira, 28 de março de 2007




Os bichos
De Christina Rodrigues


Aprendeu a viver com os bichos
Não que tivesse sido abandonado numa floresta qualquer.
Não fora uma loba quem o criara.
Mas aprendeu com os bichos a andar. A falar.
Vivia no circo.
Sua mãe, a trapezista, viva nas nuvens, e seu pai, o palhaço, não levava muito a sério a paternidade.
Tinha mais afinidade com a macaca Zizinha, que foi quem o amamentou.
Sua primeira palavra foi huhuhaha.
Aprendeu a andar com Lulu, uma podle adestrada que andava nas duas patas.
Seu banho quem dava era Zohrar o elefante. Com sua gigantesca tromba largava água encima dele.
Seu pai, o palhaço, só ria.
Na hora de comer sua mãe descia do trapézio e lhe dava um prato de comida.
_Já decidiu o que você vai ser, filho?
_Mas mãe, eu só tenho 5 anos.
_É a idade que se começa por aqui.
Ele não conseguia escolher. Eram tantas as opções.
Contorcionista, trapezista, domador, mágico...
Só não queria ser palhaço. Palhaço era tão triste!
Seu pai ria o dia todo e na hora que o espetáculo acabava, tirava a maquiagem e chorava, chorava....
_Que futuro que eu tenho pra te dar, filho! Neste circo pequeno que se apresenta em cidadezinhas perto do fim do mundo.
Ele sonhara ser palhaço do Gran Circo de Soleil, mas isso ficava em outro país. E seu pai nunca fora tão talentoso assim.
Ele era escada. Apanhava pros outros rirem.
Um dia ele decidiu.
Queria continuar com seus animais.
_Mãe! Vou ser o domador mais jovem do mundo!!!!
E antes que ela dissesse alguma coisa se lançou à jaula dos leões.
Ele nunca tinha entendido o porque deles viverem sempre na jaula.
Foi a primeira vez que viu seu pai chorar ainda vestido de palhaço, e sua mãe descer do trapézio antes do fim do espetáculo.
E o público, sem entender nada, gritar enlouquecido!
Ele fora a maior atração daquele circo em toda sua existência.
A dele e a do circo.


EM MEIO A COISAS SIMPLES

De Luca Oliveira

Pablo acordou tenso. O relógio marcava 4:47am, e ele tentou lembrar se conhecia a mulher que estava ao seu lado.
Sua cabeça doía. Sentia ainda a mistura do gosto da nicotina, dos drinks e do batom daquela desconhecida. Mas, dessa vez, não se orgulhou disso. Levantou-se, ascendeu um cigarro e foi até o banheiro. Ao olhar-se no espelho, viu as marcas das chupadas no pescoço, e sentiu as costas arderem sob as marcas de arranhões feitos pelas unhas daquela mulher. Olhou então para a aliança na mão esquerda, e uma dor espantosa o invadiu. Uma mistura de tristeza, raiva e nojo de si mesmo, ao lembrar de sua esposa e sua filha de quatro anos, que naquele momento, deveria estar dormindo sem o pai em casa.
Saiu cambaleando, sob o efeito do uisk. Pegou suas roupas caríssimas do chão e saiu daquele apartamento sentindo-se o mais nojento e mau caráter dos homens.
Era uma manhã de sábado, e ele se encontrava como em todos os fins de sexta-feira que viveu conforme a imagem de “bem sucedido” lhe mostrava.
Parou seu carro na Rua Augusta e subiu até a Avenida Paulista procurando uma cafeteria. Imaginou que os efeitos da cafeína poderiam diminuir sua ressaca.
Ascendeu outro cigarro e olhou ao redor. Pensou em quantos homens “de bem”, assim como ele, passavam por ali. Viu um dos bancos que fora gerente, lembrou da fortuna que ganhou ali, e do número não menos alarmante de dinheiro que gastou em prostíbulos, bares e festas que só trouxeram como recompensa, a vergonha de estar traindo a mulher que jurara amar e ser fiel até a morte.
Lembrou de sua filha, seu rostinho e sua voz a pedir na noite anterior: “Papai, fica comigo hoje?”. Lembrou-se também de sua reação agressiva ao dizer “Tenho muito trabalho hoje, meu anjo... vou a uma reunião, e não posso perder tempo”. Lembrou de sua mulher a olhá-lo como quem sabe o que ele andava fazendo. Como quem estava cansada daquelas mentiras e desculpas cínicas. Pôde ver a expressão triste da garotinha que não desejava nada mais que a companhia de seu pai.
Pôs-se a chorar. Trêmulo, envergonhado. Daria todo seu dinheiro, carreira, nome e status que conquistou durante anos, por um momento sem aquela angustia.
No meio da multidão. Na região mais influente do estado mais populoso do país, um homem podre de rico, e de influência, curtia a vergonha de ser na verdade, um fraco miserável, pobre e mentiroso. Nunca se sentira assim. Sem que ele percebesse, estava buscando em coisas passageiras, uma paz permanente. Uma paz que ele desconhecia. Via no rosto dos executivos que passavam por ali, o semblante infeliz, o olhar insatisfeito de quem conseguiu tudo que se pode esperar: Um emprego perfeito, uma conta bancária perfeita. O carro perfeito... Só não, a sensação de estar livre para sorrir.
Com todo aquele glamour, todo aquele poder, ele se sentia pobre, fraco e impotente.
Passou sua vida buscando algo que nem toda sua herança, seu diploma, fortuna e império, poderiam lhe dar. Acreditava ser feliz assim. Ou melhor, fingia ser feliz assim. Mas, estava cansado de viver de fachada.
Seu relógio marcava agora, 5:23, e o cinza que cobria o céu naquele dia frio, foi aos poucos dando lugar ao vermelho-laranja do sol.
A cidade começava a acordar. Alguns estabelecimentos começavam a abrir. Ele só observava. Ainda chorando, na frente da cafeteria que esperava abrir, começou a perceber coisas que o cercaram durante muitos anos, mas ele não conhecia.
Viu no canteiro daquela avenida, flores plantadas. Teve o vislumbre das cores e da delicadeza delas. Uma mulher passou por ele com uma criança nos braços. E essa criança sorriu pra ele. Pôde perceber a vida pulsar em coisas simples que outrora, lhe eram insignificantes. Viu o Sol nascer. Sentiu sua luz e o bem estar causado pelo seu calor...
Sentiu então, pela primeira vez, uma sensação de alegria que nem seu dinheiro e as grifes que usava poderiam lhe proporcionar. E sim, coisas sem importância como uma a luz do sol, o sorriso de um bebê e uma flor que nasce no canteiro de uma avenida movimentada.
Viu que tudo o que tinha conquistado ao longo de sua vida, não lhe trouxe a paz que aquelas coisas “pequenas” lhe concebiam sem que ele pedisse ou se esforçasse para ver.
Nem os negócios milionários, suas viagens para o exterior e as prostitutas. Nada. Foi então para casa. Tomou um banho, uma aspirina. Foi até o quarto da filha, deu-lhe um beijo, a olhou por alguns instantes e saiu. Deitou-se ao lado de sua esposa que estava acordando, e que colocou o braço em volta de seu corpo, chegou seu rosto perto do dele e disse: “Eu te amo”.
Ele, com uma lágrima a escorrer, disse: “Querida, perdoe-me. Por favor”. Ela sorriu. Podia sentir que ele estava sendo sincero, e repetiu as palavras que há muito tempo, não ouvia dele.
Ele dessa vez chorou de alegria, pois percebeu que mesmo, se não tivesse as paredes e pisos cobertos de bens, tinha tudo que precisava para ser feliz.

quarta-feira, 21 de março de 2007













Batida




Por Christina Rodrigues

_ Eu vou te arrebentar_ eu disse!_
_ Vem! Vem! Quero ver se tu é homem!
Não sei o que doía mais! A provocação ou o assassinato do português!
Olhei pros lados e pensei comigo! Vou ter que brigar ou vão me tomar por maricas.
Avaliei meu homem. Meu não! Dele!
Era maior do que eu, mais forte e estava com mais raiva. Ou seja, minha possibilidade de ganhar a peleja era nula.
Olhei pra dentro do meu carro e meu filho de 8 disse:
_Vai pai! Acaba com ele!!
Olhei em volta em busca de um pau, uma cadeira, ou qualquer coisa que eu pudesse manter a devida distancia pra preservar minha integridade física.
Não havia nada. Mas mesmo que houvesse eu acabaria saindo como covarde nesta história!
Você sabe! Imagem é tudo!
Principalmente a imagem de um pai diante de seu filho.
Pensei em respirar fundo e ser razoável.
Assumir que estava errado, mesmo não estando! Afinal pra que se paga seguro?
Mas eu já tinha xingado, me debatido, depreciado a santa mãezinha do infeliz.
Mas isso antes dele sair do carro!
O cara era um verdadeiro armário. Mas você sabe! A imagem!!!!
Comecei a rosnar, a babar, a gritar e esmurrar meu próprio carro na ânsia de assustá-lo! Ele podia pensar que eu era louco e me perdoar. Não adiantou! Ele gritou mais alto e esmurrou meu carro.
Pensei nas lágrimas de minha mulher no meu enterro! Do Júnior sem ninguém que lhe garantisse o futuro, da minha mãe sofrendo sobre meu caixão e não tive dúvida! Atirei-me no chão, estrebuchei, revirei os olhinhos pus a mão no coração e gritei por socorro. O homem me pos em seu carro e me levou pro hospital. Me arrependi de o ter insultado.
Fiquei lá gritando até ele sair!
Depois me desculpei com os médicos e fui pra casa. Disse pro meu filho que foi um princípio de enfarte!
Frágil sim! Covarde nunca!!! Preciso manter a imagem!