Por Reinaldo Simões.
Ele caminhava à noite pelo Boulevard, inquieto. Os pensamentos vinham como coisas que se encontravam com maior ou menor velocidade, como lembranças nunca esquecidas. Na verdade tentava afastar-se da sensação de arrepio que sentira à pouco, no bar. O rapaz encostado no balcão em discussão bêbada esbravejou alguma coisa com o gerente. O que o garoto dissera o deixou arrepiado e de “espírito” vazio. Então pagou a sua conta e saiu, torcendo o caminho de casa para andar um pouco sob aquela paisagem lunar. Fez uma viagem pelo tempo e se viu com dezesseis anos escrevendo e desenhando para um jornal de esquerda. O ano era de 77 e a ditadura militar que oscilava pela primeira vez, pressupondo seu estertor fortalecia suas garras e as usava sem comedimento. Eram muitos braços de garras perigosas, e muitos desses braços já separados do monstro agiam por conta própria. Lembrou-se também dos movimentos, dos grupos clandestinos, de jogar pedras na tropa de choque, mostrar a bunda para a PE e fugir como o vento dos “caçapões”. Dos jornais de mimeógrafo com a capa mostrando assuntos escolares, mas de conteúdo completamente diferente. As vezes ria de suas memórias, e outras percebia que a alegria “batera” em outro lugar. É que pensava também nos amigos desconhecidos que sumiram sem deixar rastros. E que mesmo aquela viagem deitado sob a lona de um caminhão por centenas de quilômetros, entre alfaces e outros matos, não tinha o menor sabor de aventura. O medo estava sempre presente e quando não estava era muito pior - sinal que se expusera demais.
Ele caminhava à noite pelo Boulevard, inquieto. Os pensamentos vinham como coisas que se encontravam com maior ou menor velocidade, como lembranças nunca esquecidas. Na verdade tentava afastar-se da sensação de arrepio que sentira à pouco, no bar. O rapaz encostado no balcão em discussão bêbada esbravejou alguma coisa com o gerente. O que o garoto dissera o deixou arrepiado e de “espírito” vazio. Então pagou a sua conta e saiu, torcendo o caminho de casa para andar um pouco sob aquela paisagem lunar. Fez uma viagem pelo tempo e se viu com dezesseis anos escrevendo e desenhando para um jornal de esquerda. O ano era de 77 e a ditadura militar que oscilava pela primeira vez, pressupondo seu estertor fortalecia suas garras e as usava sem comedimento. Eram muitos braços de garras perigosas, e muitos desses braços já separados do monstro agiam por conta própria. Lembrou-se também dos movimentos, dos grupos clandestinos, de jogar pedras na tropa de choque, mostrar a bunda para a PE e fugir como o vento dos “caçapões”. Dos jornais de mimeógrafo com a capa mostrando assuntos escolares, mas de conteúdo completamente diferente. As vezes ria de suas memórias, e outras percebia que a alegria “batera” em outro lugar. É que pensava também nos amigos desconhecidos que sumiram sem deixar rastros. E que mesmo aquela viagem deitado sob a lona de um caminhão por centenas de quilômetros, entre alfaces e outros matos, não tinha o menor sabor de aventura. O medo estava sempre presente e quando não estava era muito pior - sinal que se expusera demais.
Num entardecer, ao sair do jornal após entregar sua matéria, foi surpreendido na praça por três caricaturas muito conhecidas. Três homens altos, de meia idade, paletós e enormes óculos escuros. Culpou-se na hora! pensou –“Me distraí. Merda!”. É isso -sem medo a coisa era pior. Não teve opção, no carro de passeio espremido entre dois no banco de trás, ouvia os conselhos do motorista. O sujeito sabia tudo sobre sua família, seus amigos, seu colégio, e tinha a voz falsamente doce. Enquanto outro oferecia cigarro pensou –“E logo eu que sempre tomei cuidado, que nunca envolvi ninguém.” -“Seu pai é jornalista de cinema, não é rapaz? E sua mãe tem uma firma de brindes. Eles sabem o que você faz?” -Não colocaram venda, quando acharam que a hora certa tinha chegado meteram-lhe as mãos sobre sua nuca e o abaixaram entre as pernas para que visse apenas o chão do carro. Um deles, do banco de trás tirou o paletó e enfiou-lhe na cara –“Sai!”- era caminho para o que imaginou ser um prédio com escadas de descida que nunca poderia reconhecer, com o queixo encostado no peito, o paletó na cara e o coração disparado como um lp em 78 rotações.
.Tropeçando sempre, empurrado e levado por mãos habituadas ao caminho, que parecia um estreito corredor, finalmente foi parado. O paletó retirado da cara, e na sua frente apenas grades. Estava ainda do lado de fora, e viu que do outro lado olhavam para ele como se o esperassem, foi empurrado e então ouviu o barulho da porta de grade sendo fechada por trás. O lugar era iluminado por uma lâmpada muito fraca, havia por lá uns vinte e poucos, homens e mulheres, todos de pé, muito juntos. Um rapaz de barba grande e enroscada se aproximou e disse -"Seja bem vindo, agora você é um de nós"- e baixo no ouvido -"Tem alguma notícia lá de fora? Qual o seu juramento? Se tem alguma notícia fala prá mim!"- "Não sei de nada. Só sei que estou aqui."- "Quando você caiu?"- "Agora. Trabalho prá um jornal."-"Qual seu juramento?"- Foi puxado pelo braço por uma mulher muito maqueada, forte, e de roupas extravagantes -"É um menino Fulano! Você está bem meu filho? Eles te bateram?" - "Não Dona".
Ela cuidou dele durante todo o tempo que pode, até ser levada. Disse prá ele que não podiam sentar, agachar podia, mas sentar não! Era regra dos lideres -"Lideres? Mas quem? Lideres de quem?" -Era preciso ter ânimo e força! Era preciso cantar os hinos, traçar planos, dizer que estava tudo certo! Era preciso passar o tempo sabe-se lá para quê!
Ela cuidou dele durante todo o tempo que pode, até ser levada. Disse prá ele que não podiam sentar, agachar podia, mas sentar não! Era regra dos lideres -"Lideres? Mas quem? Lideres de quem?" -Era preciso ter ânimo e força! Era preciso cantar os hinos, traçar planos, dizer que estava tudo certo! Era preciso passar o tempo sabe-se lá para quê!
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Tudo era ouvido como se fosse em outro universo, cada cochicho, cada sussurro e gemido. Um dos rapazes se desesperou e deitou-se gemendo e tossindo - tudo lá era também cansaço, desespero surdo, umidade e cheiro de bolor. O rapaz que se deitou foi surrado ( por algum motivo desconfiavam dele), mas as mulheres impediram o pior, levantaram-no e seguraram o gorducho de pé, várias delas. Durante muito tempo. Muito tempo.
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O tempo! O tempo alí naquela terra estranha era ainda mais estranho, surrealista. Alí, todos aprenderam um signifcado para a angústia impossivel de expressar em palavras, impossível caber na palavra angústia. O tempo era medido pelo barulho de passos no "andar" de cima. Muitos passos, todos comedidos, poucos passos, nenhum passo, silêncio. Muito silêncio. Mais passos, desta vez descendo as escadas que não podiam ver. Esses passos, esses malditos passos que sempre anunciavam que mais um entre eles seria "levado". Muita gritaria, muitos socos e tiros na parede proxima do corredor, já toda marcada, mostrando que não foram os primeiros. Promessas gritadas -"Nos vemos lá fora! -- Força companheiro!" - mas quem não tem medo de tiro? Um a um foi levado. Já podiam sentar-se ao chão, deitar-se, dormir, meter a cabeça na enorme tina de água suja e perder todas as esperanças.
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A Dona fulana que tratara dele já estava muito fraca e confusa e saiu de lá calmamente, arrastando-se um pouco e sorriu. Só para ele. Bem, pelo menos foi o que ele pensou, e andando pelo Boulevard sorriu de novo um sorriso que não, ou apenas talvez, tivera sido dele.
.Finalmente eram três. O casal fazia amor em desespero, era uma espécie de pacto ou coisa assim. Achavam, tinham certeza que não iriam sobreviver àqueles dias. Conheceram-se no escuro e no escuro de suas curtas vidas se amaram, para sempre. Depois de algum tempo eles o convidaram, disseram que era o momento de todos se unirem, compartilharem, ter a última chance de humanidade. Mas ele recostado contra a parede e de rosto virado fez apenas um gesto flácido com uma das mãos, misto de agradecimento e negativa.
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O casal não teve a felicidade aparente de desaparecer unido. Foram muitas juras de reencontro, aqui ou em algum lugar do cosmo, pois era chegada a hora do próximo milênio, e em breve todos estariam juntos.
Logo foi o silêncio, e completamente só, pela primeira vez conseguiu entrar em sono profundo. Acordou com a chegada estrepitosa de mais um. Esfregando os olhos e firmando a vista percebeu pela atitude dos meganhas que aquele não era um homem comum. Enrolado em um cobertor roto, ficou de pé durante longo tempo, o que se podia ver de seu rosto magro eram as enormes deformidades arroxeadas de seu lado esquerdo. Era L.F., dezessete anos, uma lenda entre os aparelhos revolucionários. Tinha dado muito trabalho, tinha sido muito difícil agarrá-lo, e agora os “home” comemoravam com gritos, tapas em suas costas e piadas entre outras sutilezas.
Logo foi o silêncio, e completamente só, pela primeira vez conseguiu entrar em sono profundo. Acordou com a chegada estrepitosa de mais um. Esfregando os olhos e firmando a vista percebeu pela atitude dos meganhas que aquele não era um homem comum. Enrolado em um cobertor roto, ficou de pé durante longo tempo, o que se podia ver de seu rosto magro eram as enormes deformidades arroxeadas de seu lado esquerdo. Era L.F., dezessete anos, uma lenda entre os aparelhos revolucionários. Tinha dado muito trabalho, tinha sido muito difícil agarrá-lo, e agora os “home” comemoravam com gritos, tapas em suas costas e piadas entre outras sutilezas.
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L.F. apesar de seu estado conservava a lucidez que podia, era um gigante, enfim. Conversavam muito e o recém chegado começou a enlouquecer com os ruídos de passos. Pediu um favor que seu recente amigo jurou cumprir se saísse de lá, este favor consistia em entregar para alguém muito importante um pequeno bilhete escrito num pedacinho de papel com um fósforo queimado. Também do alto de sua experiência procurou acalmar seu confidente dizendo que deveria ser libertado, pois não conhecendo os primeiros escalões revolucionários a ditadura o esqueceria em algum canto.
Então lá se foi! Apareceram entre as grades e chamaram –”L.F., agora é a tua vez! “- novos gritos de júbilo, mais piadas e tapas nas costas –“Vem pra fora que hoje é o dia de te levar pra casa! Pra casa do caralho!”
L.F. respirou o mais fundo que pode e murmurou um –“Até que enfim”- virou-se e disse –“Não esquece!”.
Ao perceber que o amigo desapareceria para sempre depois daquelas grades, pela primeira vez gritou como se existir fosse um grito -“Deixa o cara aqui! Deixa ele preso! Deixa ele preso! Deixa o cara viver! e caminhando pelo Boulervard percebeu que mexera os lábios, como se gritasse novamente, só que desta vez muito, muito baixinho.
Então lá se foi! Apareceram entre as grades e chamaram –”L.F., agora é a tua vez! “- novos gritos de júbilo, mais piadas e tapas nas costas –“Vem pra fora que hoje é o dia de te levar pra casa! Pra casa do caralho!”
L.F. respirou o mais fundo que pode e murmurou um –“Até que enfim”- virou-se e disse –“Não esquece!”.
Ao perceber que o amigo desapareceria para sempre depois daquelas grades, pela primeira vez gritou como se existir fosse um grito -“Deixa o cara aqui! Deixa ele preso! Deixa ele preso! Deixa o cara viver! e caminhando pelo Boulervard percebeu que mexera os lábios, como se gritasse novamente, só que desta vez muito, muito baixinho.
Fim da primeira parte.
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Muito tarde e Muito longe. _parte II_
Seus passos pelo Boulevard acompanhavam os pensamentos. LF. Tivera razão, os “home” desistiram dele. O mesmo esquema- cara coberta, e dessa vez cafezinho de garrafa térmica no carro, por baixo do paletó, só ‘’ prá ficar no prumo’’. Diferentemente de seu triste amigo de cela, ele não teve efusividade, nem cumprimentos e piadas calhordas. Foi tudo em silêncio, sem tapinhas nas costas, empurrão, nem conselhos, nada. Então ele pensou
-‘’Estou salvo ! ’’- Os meganhas detestavam quando tinham que livrar a cara de alguém, parecia pra eles que o servico ficava incompleto, por isso agiam daquele jeito tão ‘’antipático’’. Era muito tarde quando foi tirado de dentro do carro, e nem se deram ao trabalho de por um pé do lado de fora, abriram a porta e -‘’Sai’’-, caiu para dentro da madrugada e ainda cambaleante reconheceu a Via Dutra Klm trinta e poucos, sentiu-se despencar e apagou num canteiro. Acordou com uma rodinha de trabalhadores em torno e um sol danado na cara. O resto foi moleza -polícia, telefonema prá família, hospital, soro, remédios, comida, sono.
Quando realmente conseguiu abrir os olhos, viu expectativas nos rostos sorridentes de sua família em torno de si. Ele então perguntou há quanto tempo estivera fora de casa, e o pai respondeu –‘’Três meses, meu filho, três meses.’’
Só se sentiu em liberdade depois de algum tempo. Recuperando-se aos poucos, e com a saúde voltando, retornou ao jornal e a suas atividades de sempre. Acreditou-se muito mais forte e maduro, com muito mais capacidade de enfrentar qualquer inimigo.
Depois disso veio o alistamento, do qual tentou se esquivar, mas foi detido e encaminhado, e já como recruta preso por várias vezes no quartel.
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Seus passos pelo Boulevard acompanhavam os pensamentos. LF. Tivera razão, os “home” desistiram dele. O mesmo esquema- cara coberta, e dessa vez cafezinho de garrafa térmica no carro, por baixo do paletó, só ‘’ prá ficar no prumo’’. Diferentemente de seu triste amigo de cela, ele não teve efusividade, nem cumprimentos e piadas calhordas. Foi tudo em silêncio, sem tapinhas nas costas, empurrão, nem conselhos, nada. Então ele pensou
-‘’Estou salvo ! ’’- Os meganhas detestavam quando tinham que livrar a cara de alguém, parecia pra eles que o servico ficava incompleto, por isso agiam daquele jeito tão ‘’antipático’’. Era muito tarde quando foi tirado de dentro do carro, e nem se deram ao trabalho de por um pé do lado de fora, abriram a porta e -‘’Sai’’-, caiu para dentro da madrugada e ainda cambaleante reconheceu a Via Dutra Klm trinta e poucos, sentiu-se despencar e apagou num canteiro. Acordou com uma rodinha de trabalhadores em torno e um sol danado na cara. O resto foi moleza -polícia, telefonema prá família, hospital, soro, remédios, comida, sono.
Quando realmente conseguiu abrir os olhos, viu expectativas nos rostos sorridentes de sua família em torno de si. Ele então perguntou há quanto tempo estivera fora de casa, e o pai respondeu –‘’Três meses, meu filho, três meses.’’
Só se sentiu em liberdade depois de algum tempo. Recuperando-se aos poucos, e com a saúde voltando, retornou ao jornal e a suas atividades de sempre. Acreditou-se muito mais forte e maduro, com muito mais capacidade de enfrentar qualquer inimigo.
Depois disso veio o alistamento, do qual tentou se esquivar, mas foi detido e encaminhado, e já como recruta preso por várias vezes no quartel.
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Namorou, casou, mudou de contatos, e por suas atividades foi ao palanque das Diretas Já. Não como político, mas como ativista cultural. Percebeu que em cada passo ganhava mais o mundo, passos muito diferentes dos que dava agora pelo Boulevard. Aqueles passos estavam muito longe e talvez agora fosse tarde demais. Muito tarde, por isso consultou o relógio e resolveu apesar da hora, voltar pro bar. Lá cumprimentou a todos, sempre muito popular, e deu a última talagada da noite.
Sorrindo se despediu e sorrindo voltou para casa.
Quanto ao rapaz bêbado que gritara no bar qualquer coisa de arrepiar? Ah! Deixa prá lá!
Creio que foi -talvez tenha sido- qualquer coisa como -‘’É por isso que neste pais só tem ladrão! Terra de mercenários! De hipócritas! Nesse país ninguém faz nada, nunca ninguém faz nada que preste!Ninguém faz nada prá ninguém!’’
Mas ao chegar em casa os ecos da voz roufenha do rapaz já tinham desaparecido de sua cabeca, Já tinham ficado muito tarde e muito longe.
Sentiu-se feliz e abracou com o pensamento toda a sua família que já dormia.
Sorrindo se despediu e sorrindo voltou para casa.
Quanto ao rapaz bêbado que gritara no bar qualquer coisa de arrepiar? Ah! Deixa prá lá!
Creio que foi -talvez tenha sido- qualquer coisa como -‘’É por isso que neste pais só tem ladrão! Terra de mercenários! De hipócritas! Nesse país ninguém faz nada, nunca ninguém faz nada que preste!Ninguém faz nada prá ninguém!’’
Mas ao chegar em casa os ecos da voz roufenha do rapaz já tinham desaparecido de sua cabeca, Já tinham ficado muito tarde e muito longe.
Sentiu-se feliz e abracou com o pensamento toda a sua família que já dormia.
FIM.
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